Com o G10 das Favelas, moradores de comunidades brasileiras querem atrair investimentos, transformar exclusão em oportunidades e abrir janelas d...22 minutos de leitura
Com o G10 das Favelas, moradores de comunidades brasileiras querem atrair investimentos, transformar exclusão em oportunidades e abrir janelas de esperança em meio aos problemas sociais.
Espaços de violência, marginalidade e escassez. Um retrato frio das favelas é alimentado por representações negativas que circulam nos meios de comunicação de massa dominantes e em certas pesquisas e sistemas educacionais.
Esses lugares são retratados sob os efeitos inegáveis do tráfico de drogas, da guerra por poder entre facções criminosas e suas nuances: crimes, assassinatos e operações policiais. Por não serem confrontadas, essas representações são difundidas entre a população e percebidas como a principal narrativa, a norma.
No entanto, atrás de inúmeros estereotípicos, estatísticas, pobreza, repressão, medo e desigualdade, estão crianças, jovens, adultos e idosos. Famílias. Comunidades. Histórias de lutas que se sobrepõem à linha da violência e evidenciam um novo olhar para as favelas.
Entre becos e vielas, sonhos e esperanças ganham contornos, mas poucas oportunidades. Casas de alvenaria, madeira, alumínio, papelão, quando não tudo junto, se espremem lado a lado em uma paisagem de densidade populacional. A vulnerabilidade dita as regras e impõe desafios.
Atualmente, mais de 13 milhões de brasileiros moram em favelas, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), e enfrentam um cenário de problemas sociais. Água, saneamento básico, coleta de lixo, itens de higiene, acesso à eletricidade, internet e à saúde são artigos de luxo e abrem margem para adversidades ainda maiores.
Na contramão da discriminação e com a consciência desse contexto, surgiu uma iniciativa que deseja inspirar o Brasil inteiro a olhar para esses espaços de uma maneira diferente: o G10 Favelas.
Sem apoio ou financiamento do poder público, o bloco, formado em novembro de 2019, reúne líderes e empreendedores de impacto social e une forças em prol do desenvolvimento econômico e protagonismo dos membros das principais comunidades do país:
A exemplo dos grandes blocos econômicos, como o G-7, que integra os países ricos (Alemanha, Canadá, Estados Unidos, França, Itália, Japão e Reino Unido), o G10 conta com encontros regulares e termos de cooperação voltados a ampliar o impacto social de suas parcerias.
Segundo pesquisa da Outdoor Social, juntas, essas dez comunidades têm um potencial de consumo de R$ 7,7 bilhões. Desta forma, a proposta do G10 Favelas é estimular os empreendedores locais para que se tornem autossustentáveis, façam investimentos, gerem receita e contratem a força de trabalho local, promovendo o desenvolvimento econômico das comunidades.
“Além dos desafios de empreender, queremos fazer com que investidores acreditem nesse mercado bilionário que está nas comunidades. Essa é a essência do G10 das Favelas, o empreendedorismo transformando a favela como potência e não como carência”, destaca Caio Caciporé Ferreira, 38 anos, produtor visual e diretor de arte da Agência Paraisópolis, responsável por promover, através da comunicação e geração de conteúdo, a visibilidade do bloco.
“Essa é a essência do G10 das Favelas, o empreendedorismo transformando a favela como potência e não como carência”
A ideia é tornar as comunidades grandes polos de negócios, atrativos para investimentos, de forma a transformar os problemas sociais e a exclusão em startups e empreendimentos de impacto social de sucesso.
Em tempos de coronavírus, enquanto muitas pessoas flexibilizam o distanciamento social, nas favelas, a luta segue não sendo apenas contra o vírus, que, inclusive, fortaleceu as desigualdades sociais latentes já existentes nesses espaços. Junto a Covid-19, veio também a explosão do desemprego e outros problemas comuns às regiões mais vulneráveis, como a escassez e a fome.
Além disso, as principais medidas de prevenção recomendadas pelas autoridades de saúde para conter a pandemia — como fazer uso de álcool gel e praticar o isolamento social — não são possíveis para muitos moradores de periferias e favelas, que sobrevivem com trabalhos informais.
Na grande maioria das residências dessas regiões, além do acesso restrito a saneamento básico, faltam condições para adquirir o mínimo à sobrevivência, quem dirá o produto que garante a higiene e desinfecção das mãos.
E ficar em casa, que para muitos também não é uma opção, não garante a segurança, já que em imóveis com poucos cômodos, que abrigam várias pessoas, pode não ajudar. Uma realidade na qual as orientações “trabalhem em home office” e “evitem aglomerações” não fazem efeito ou sentido.
Assim, em função das incertezas sobre as medidas governamentais que seriam ou não implementadas, o G10 Favelas assumiu o papel de mostrar como os moradores podem ser protagonistas na busca de uma solução a partir de diferentes estratégias e ações.
Exemplo da força do G10 é um projeto montado em Paraisópolis, comunidade com mais de 100 mil habitantes na zona sul de São Paulo, que está sendo replicado em várias comunidades do Brasil, mostrando como a sociedade civil pode participar e ajudar na superação da crise.
Com o trabalho de voluntários e de outras lideranças locais, o grupo criou uma infraestrutura robusta para enfrentar a pandemia, que incluiu, entre outras iniciativas, a contratação de três ambulâncias (sendo uma UTI móvel), médicos, enfermeiros e socorristas, além da capacitação de moradores como socorristas, que já prestaram mais de 1,4 mil atendimentos.
A medida foi necessária porque as ambulâncias do Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (Samu) não entram na favela.
Além desse suporte, a comunidade também conta com a entrega de marmitas para neutralizar a fome nas áreas mais vulneráveis. Os pratos são preparados pela Mãos de Maria, um grupo de empreendedoras de Paraisópolis que qualifica mulheres que já sofreram violência doméstica para que possam montar os negócios delas ou trabalhar dentro da cozinha da empresa.
Mais de 1 milhão de marmitas já foram distribuídas gratuitamente na comunidade desde o início da ação.
Outra iniciativa é o Costurando Sonhos, um projeto de corte e costura, também com mulheres, que empresta máquinas para que elas façam uma espécie de home office e produzam os produtos em casa, promovendo assim a capacitação e a independência financeira.
Elas, inclusive, já confeccionaram mais de 250 mil máscaras, item de uso obrigatório em função da pandemia, que foram entregues aos moradores da comunidade para garantir a proteção.
E para apoiar aqueles que estão em busca de trabalho, tendo em vista que muitos perderam suas ocupações por conta dos efeitos da pandemia, o G10 Favelas também desenvolveu o projeto Emprega Comunidades, que recebeu o apelido de “LinkedIn da Favela”. A plataforma aproxima moradores e empresas que querem empregar pessoas da comunidade e também lançou uma campanha chamada “Adote uma Diarista”.
“Eu mesmo tive a sorte de conseguir entrevistar um morador que conseguiu um trabalho registrado em carteira após fazer o cadastro no projeto. Ele vivia apenas das marmitas doadas gratuitamente pelo Mãos de Maria e não tinha nem mesmo fogão em sua residência, e, ao reduzir as doações recebidas pelo G10, o projeto teve que limitar a entrega das marmitas por duas unidades por pessoas, por isso ele nos procurou e em menos de uma semana conseguiu o trabalho”, relata Caio.
Além disso, duas escolas — agora vazias por conta da pandemia — foram transformadas em casas de acolhimento para isolar os moradores contaminados ou com suspeita de Covid-19.
“Os números de Paraisópolis se mostraram mais eficientes do que o próprio bairro do Morumbi, no qual a comunidade se encontra, sendo que tínhamos tudo para ter o pior número de mortes. O primeiro caso [de Covid-19] de São Paulo foi registrado no Morumbi e pelo grande número de pessoas por metro quadrado nas residências, tudo apontava para um grande desastre”, afirma.
Todo o conjunto de ações é articulado por voluntários, denominados de “presidentes de rua”. A comunidade foi dividida em microrregiões e cada uma passou a atender 50 casas.
Entre as atribuições estão a conscientização e monitoramento do morador em relação ao isolamento social, distribuição de doações sem aglomerações, acionamento de socorro médico e divulgação de informações verídicas. Tudo com uma linguagem específica e dentro daquela realidade.
Limites da compreensão
A realidade distinta das favelas brasileiras parece não caber no dia a dia de milhares de pessoas, seja por discriminação ou desconhecimento. Paraisópolis foi retratada em sua face mais amável em uma novela há alguns anos, mas também sofre com o lado sombrio porque, como outras favelas, está sob o controle de uma organização criminosa. Um mercado extremamente lucrativo e perigoso.
Caio, que se diz aberto a novos horizontes, sempre teve admiração pelas favelas por saber que muitos trabalhos especiais são oriundos desses espaços, mas nunca havia vivenciado de perto essa realidade e seus problemas sociais. Agora, porém, após sete meses morando ali, a percepção é clara e ainda mais consistente.
“Coisas como chamar um Uber e ver na tela a opção transporte público, entregas que não chegam, pois as vielas muitas vezes não têm números oficiais, sair mais tarde de casa por estar havendo tiroteio ou chegar no trabalho e seu colega estar com uma costela fraturada por abuso policial, são coisas que nem passam pela nossa cabeça”, desabafa Caio.
“Ao mesmo tempo, além das adversidades, vivenciar a raça e alegria dos moradores, acompanhar as obras incessantes de residências que chegam até cinco andares, do empreendedorismo, e principalmente da autogestão e da melhoria dos espaços de dentro para fora é algo que não tem preço. Me traz muita satisfação e uma luz no fim do túnel para os grandes problemas sociais e econômicos que vemos na realidade das grandes cidades”, compartilha o profissional.
Os caminhos entre ele e o grupo foram cruzados logo após Caio deixar a capital paulista para morar em Florianópolis (SC) no início deste ano. Em março, ao retornar a São Paulo para registrar um aniversário e em um evento de estética, este último cancelado em função da pandemia, foi contatado por um amigo e informado sobre um projeto que necessitava de um produtor de vídeos para acompanhar as ações na comunidade de Paraisópolis.
Ao ir para uma reunião na comunidade, no dia 23 do mesmo mês, descobriu que mais do que lideranças e moradores, o encontro tratava-se da primeira edição do G10 Favelas para fomentar o empreendedorismo. O que de início parecia ser apenas a cobertura de ações policiais, tornou-se um trabalho muito mais forte e coordenado.
“Iniciei meus trabalhos no G10 no mesmo dia. Mesmo sem computador, consegui um emprestado, instalei um editor de vídeo e às onze da noite entreguei um vídeo montado para solicitar que a população se candidatasse para presidente de rua e assim tudo começou. Hoje, sou o produtor de vídeos oficial no time de comunicação, além de diretor de arte e outras funções ligadas à imagem, redes sociais e mídias de rua. Também sugiro pautas e ideias para a coordenação do G10”, relata Caio.
Em meio às incertezas e dificuldades, o legado que fica é o posicionamento das favelas como potência econômica e também de organização.
“Se tem algo que a favela tem a ensinar é a cooperação/colaboração, pois por aqui todos compartilham muitos espaços, como as ruas estreitas que, muitas vezes, são mão dupla e por onde passa apenas um carro de cada vez, fazendo com que carros, motos e pedestres tenham que dialogar o tempo todo para que o trânsito flua e os pedestres se desloquem”, comenta o integrante do G10 Favelas.
“Se tem algo que a favela tem a ensinar é a cooperação/colaboração”
Senso colaborativo, empatia e superação são fatores importantes que nascem e crescem nas favelas, especialmente em cenários de dificuldades. O desenvolvimento econômico depende da coletividade e do fator confiança entre as pessoas.
“Os moradores das comunidades precisam de união para vencer os problemas sociais que surgem nessas regiões tão poderosas, porém discriminadas e marginalizadas. Desta forma, a cooperação sempre foi a essência da comunidade, mas agora precisamos que a sociedade civil e o poder público percebam a importância de também cooperar para criar um futuro melhor para toda cidade, com um mundo mais igualitário e mais humano”, finaliza.
*Este conteúdo pertence ao Sicredi Aliança PR/SP, que apoia projetos sociais em prol do crescimento social. Saiba mais sobre nós aqui.
*Para saber mais sobre a política de uso de informação da Sicredi clique aqui.
Comentários