Uma conversa com Alexandre Pellaes: é possível ser feliz no trabalho?

A felicidade no trabalho tem sido constantemente associada ao propósito e Alexandre Pellaes explica que não há nenhum problema com isso, desde...

21 minutos de leitura

Uma conversa com Alexandre Pellaes: é possível ser feliz no trabalho?

A felicidade no trabalho tem sido constantemente associada ao propósito e Alexandre Pellaes explica que não há nenhum problema com isso, desde que haja uma compreensão balanceada sobre o tema

A busca pela felicidade é tão antiga quanto a humanidade. Muitos relacionam a felicidade à família, aos amigos, às viagens e ao lazer. Mas é possível também alcançar a felicidade no trabalho.

São muitas as horas dedicadas à vida profissional e, por isso, é importante que esse ambiente seja uma fonte de felicidade. Apesar desta não ser uma realidade para todos, é uma possibilidade para o futuro.

É com isso que trabalha Alexandre Pellaes, fundador da Consultoria de Desenvolvimento Exboss, pesquisador e especialista em estudos sobre o significado do trabalho, novos modelos de liderança e gestão compartilhada.

O ColaboreSe entrevistou Pellaes sobre o cenário atual do mercado de trabalho, propósito, felicidade no trabalho e o que podemos esperar para o futuro. A entrevista você confere a seguir.

O que o motivou a começar a pesquisar sobre o mundo do trabalho?

Como boa parte da minha geração, aprendi desde cedo que deveria me dedicar aos estudos, fazer faculdade e arrumar um emprego em uma boa empresa que pudesse ter uma jornada de carreira definida, para virar gerente mesmo. O objetivo era o cargo!

Nesse contexto, o importante era fazer o que era solicitado, ser competente, trabalhar pesado e não reclamar. Deu certo. No entanto, durante essa jornada, fui perdendo minha autenticidade e espontaneidade.

Após 15 anos de carreira, compreendi que eu poderia agir diferente e que poderia ser um agente de transformação dentro das empresas. Isso aconteceu quando trabalhava em uma empresa americana chamada W.L.Gore, que é muito conhecida por ter uma cultura organizacional menos rígida, sem chefes, sem cargos, sem o “manda quem pode e obedece quem tem juízo”.

Decidi aprofundar meus estudos na área de gestão, modelos organizacionais e significado do trabalho. Fiz mestrado em Psicologia do Trabalho e criei minha empresa – Exboss – com o objetivo de ajudar pessoas e organizações a construir relações menos baseadas na obrigação e mais pautadas em clareza, respeito, autonomia e propósito. Claro, sem deixar de lado os resultados!

A busca pela felicidade é tão antiga quanto a humanidade

Qual o momento vivido hoje no universo do trabalho?

Atualmente, vivemos um movimento intenso de mudança no mundo do trabalho. O perfil das novas gerações, que se mostram mais qualificadas e menos propensas a aceitar modelos rígidos, acelera o processo de atualização das empresas, que correm o risco de não terem bons profissionais no futuro próximo.

Por todo esse histórico e pela evolução acelerada da tecnologia, que derruba fronteiras de espaço e tempo, o futuro do trabalho se desenha com interação mais participativa, mais autonomia e construção de um relacionamento mais saudável entre pessoas e organizações. Menos hierarquia, maior distribuição de poder e tomada de decisão. Mais foco na qualidade e não na quantidade da entrega.

A tecnologia facilitará muito a realização de atividades repetitivas. Empregos de baixo valor agregado, sem criatividade e sem interação construtiva com clientes, parceiros e fornecedores correm o risco de desaparecer. Por essa razão, é necessário dar um salto no nível de desenvolvimento e engajamento das pessoas com relação ao papel do trabalho em suas vidas.

Para nos mantermos produtivos (e sãos), o trabalho precisa deixar de ser uma relação de ter, para ser reconhecido de fato como uma relação de ser. Nós mostramos quem somos para o mundo, por meio da forma que executamos e vivemos o trabalho.

As empresas passarão a ser plataformas para o desenvolvimento das pessoas, em ambientes mais inclusivos, com diversidade de ideias e de perfis profissionais, flexibilidade e alinhamento de ideias. O propósito deixará de ser uma busca desenfreada e passará a ser uma construção conjunta. Parece utopia, mas não é. É uma conquista que só será recebida se mantivermos o desenvolvimento e a saúde econômica.

“O trabalho precisa deixar de ser uma relação de ter, para ser reconhecido de fato como uma relação de ser.”

O perfil das lideranças hoje tem relação com esses problemas? Como a liderança pode se tornar parte da solução?

Ouço com muita frequência trabalhadores dizendo “Não aguento mais ter chefe. Que saco! Por que são tão chatos e tentam mandar em mim?”. Por outro lado, também ouço constantemente o desabafo dos líderes: “Não aguento mais ser chefe. Que saco! Por que as pessoas simplesmente não fazem o que é combinado?”. Ou seja, parece que todo mundo quer a mesma coisa.

O que acontece é que o desenho do sistema de trabalho (o tal emprego) assume a premissa de que uma pessoa (trabalhador) vai realizar uma atividade exclusivamente em troca de um benefício externo e que precisa ser comandada para a realização daquela tarefa.

Por isso, foi desenhado o modelo “manda quem pode e obedece quem tem juízo” — que até pode funcionar bem, mas não é sustentável. Hoje, compreendemos que as pessoas não se sentem realizadas em apenas obedecer ordens. Há muita gente que gostaria de ter mais liberdade, dar mais opinião, ser mais criativa etc., mas o modelo não deixa, porque o “chefe” está lá definindo tudo.

O modelo atual também traz outros riscos com relação à ética e compliance. Quando a concentração de poder e de decisões está exclusivamente nas mãos dos chefes, a possibilidade de abuso e de equívocos pode ter consequências devastadoras. Sabe aquela história do chefe que fazia algo errado e os funcionários não tinham pra quem contar? Ou a empresa não faz nada porque o chefe “vende” muito? Isso tudo vai mudar.

Todos os segmentos serão afetados por essa flexibilização e ressignificação da hierarquia. Mas isso não quer dizer que os cargos vão sumir e que não vai existir mais coordenador, gerente ou diretor. O que quero dizer é que haverá menos hierarquia de poder e mais hierarquia de estrutura, para ajudar as equipes a compreenderem as responsabilidades, facilitando as discussões, o aprendizado e a tomada de decisão com diversos pontos de vista.

Ah… É importante expor que tem muita gente que ainda não está preparada para trabalhar nesse sistema, porque a demanda por autonomia vem acompanhada da necessidade do reforço de responsabilidade e iniciativa. Quem se acostumou a fazer só o que o chefe manda, vai ter problemas para ser bem-sucedido.

É possível ser feliz no trabalho?

Tenho certeza que sim! Mas é necessário mudar nossa forma de ver o trabalho! E diferenciar essa relação do tradicional “emprego”.

A ação e a atividade produtiva são naturais no ser humano. No começo da infância, descobrimos que temos a capacidade de mudar o mundo ao nosso redor. Conseguimos trocar as coisas de lugar e ver uma nova realidade. É nessa idade (2 ou 3 anos) que as crianças começam a bagunçar tudo (para desespero dos pais). Estamos explorando nossa capacidade criativa e de transformação no mundo (para a criança, é o superpoder de bagunçar). Esse é o começo da relação de trabalho.

Usarmos nossa energia de ação para mudar uma realidade que está colocada para testar novas formas de interação. Realizar uma ação que terá potencial impacto sobre as pessoas e sobre o autor da ação.

Nesse momento, na imensa maioria das casas, os adultos já começam a “controlar” a atividade: “Não mexe aí. Coloca aquilo no lugar certo (ai ai… o tal lugar certo). Não faça mais isso.”

A criança então entende que não pode fazer o que quiser com sua capacidade de ação (o que é ótimo, pois não proponho nenhuma anarquia). No entanto, ao invés de oferecermos alternativas, nós começamos a criar regras de ação. “Só pode fazer ‘isso’ do jeito que eu quero”.

Assim, começamos a introduzir a criança no conceito do emprego, em que líderes hierárquicos (no caso, os pais) definem as atividades que podem ser realizadas (o que, como e quando, mas rarissimamente explicando o porquê). Aprendemos a realizar tarefas para agradar os pais e recebermos algo externo (amor e apreciação).

Seguimos nessa linha durante a idade escolar, quando realizamos tarefas para “passar de ano” e para receber, novamente, aprovação e amor dos professores. Finalmente, quando entramos no mercado de trabalho, mantemos o padrão e realizamos as atividades para receber o salário, promoções e, adivinha só, aprovação e amor dos chefes.

Ou seja, as decisões da nossa vida, principalmente do ponto de vista produtivo, são muito influenciadas por três P’s: nossos Pais, nossos Professores e nossos Patrões.

Vivemos um movimento intenso de mudança no mundo do trabalho

Pode falar mais sobre as diferenças entre trabalho e emprego?

Trabalho é sua relação com o mundo, por meio da ação. Pode ser uma ação paga ou não. Pode ser fazer um jantar com intenção. Pode ser preparar o café. Pode ser escrever um poema. A chave dessa relação é a intenção transformada em ação, com cuidado, zelo e capricho. Essa ação tem potencial impacto sobre as pessoas e sobre o autor, pois há consciência e presença.

Essa é uma relação incerta, imprevisível, complexa. Mas é genuína e, realmente produtiva e que traz realização (conseguimos nos reconhecer na ação e no resultado).

O emprego é sua relação com uma entidade hierárquica superior, da qual você espera algum retorno por sua ação. Pode ser pendurar a toalha só porque a mãe mandou. Pode ser fazer um macarrão instantâneo só pra não morrer de fome e não levar bronca. Ou fazer, exclusivamente, o que o chefe manda, sem atenção e sem intenção.

Essa é uma relação linear, que tenta ser previsível e simplificada, que pode ser falsamente produtiva. Não há presença verdadeira. Todos nós conhecemos alguém que “faz de conta que trabalha”. Alguns, inclusive, fingem tão bem, que eles mesmos acreditam.

Por isso, o trabalho é uma relação de ser, quando você se enxerga e mostra quem é para o mundo, enquanto o emprego é uma relação de ter, em que você espera receber algo em troca da sua ação.

O ideal é levarmos aos nossos empregos a nossa relação com o trabalho. Ou seja, não deixe a relação com seu emprego atrapalhar sua relação com o trabalho. Nenhum chefe e nenhuma empresa tem o poder de nos tornar pessoas medíocres. Só se deixarmos!

Propósito é uma palavra que está na moda para se referir à felicidade no trabalho. É esse mesmo o caminho ou existem outras alternativas?

Trabalho é sua relação com o mundo

Mas não esse propósito comercial e “marketeiro” de ter um trabalho que muda o mundo, que fala que cada um nasceu com uma missão e que, se você não descobriu a sua, não sabe qual é sua razão de vida.

Isso é “propositite”. Tentar criar um discurso sobre propósito para todas as atividades. É claro que haverá tarefas chatas que devem ser realizadas e que não possuem um sentido em si, pois são apenas um meio para algo maior. Será muito difícil alguém sentir realização pela atividade de emitir uma nota fiscal. No entanto, compreender o papel dessa atividade para a concretização de uma operação e da missão de uma organização fará todo sentido.

Vivemos, de certa forma, uma ditadura do propósito, que impõe o valor da vocação como superior ao valor da entrega. Os discursos de valor sobre o trabalho falam em encontrar o seu propósito, fazer o que se ama, ser feliz no trabalho, servir sua missão de vida. Não há nenhum problema com isso, se houver uma compreensão balanceada sobre o tema.

Em primeiro lugar, parece cruel atrelar a felicidade de uma pessoa, integralmente, à sua capacidade de reconhecer seu propósito de vida, como se todas as pessoas tivessem maturidade e experiências suficientes para ajudá-las nessa identificação. No fim das contas, isso se torna mais um peso “ai, meu Deus… Eu não sei meu propósito de vida…” — pronto, mais um infeliz.

O propósito, muitas vezes, é explicado como o “porquê” você realiza tal coisa. A sua mais profunda motivação. E então, nessa ditadura, só teriam valor e felicidade as pessoas que atendem o seu “chamado” e compreendem claramente o seu “porquê”.

Em contraponto ao valor do “porquê”, faço um chamado ao valor do “como”. Quem traz mais contribuição ao mundo, afinal? Alguém que trabalha por vocação, sem qualidade e sem impacto, ou alguém que faz seu trabalho com qualidade e com cuidado às pessoas, mesmo sem identificar aquela como sua missão de vida?

Será que o “porquê” (vocação) é mais relevante e traz mais felicidade do que um “como” (atividade) bem feito?

Tenho sérias dúvidas. Cuidado com o discurso vazio sobre propósito sem entrega! O que muda o mundo é a ação. O resto é sonho!

Propósito é uma construção. Ninguém “encontra” propósito. Construímos o propósito costurando atividades, relacionamentos e impacto sobre as pessoas e sobre nós, com uma linha de significado individual. Por isso é impossível copiar o propósito de outro ou tentar apropriar-se dele.

Estamos vivendo um período de retornos — ao trabalho em si, aos escritórios, aos reencontros. Como aproveitar esses momentos para nos adaptarmos e transformarmos o espaço de trabalho em algo mais agradável e feliz para os colaboradores?

Acredito que temos boas oportunidades nessa retomada. De criação. De inovação nos relacionamentos. As pessoas e as empresas que tiverem essa consciência vão experimentar prosperidade financeira e também um senso de realização positiva.

Retornar aos mesmíssimos formatos aos quais estávamos habituados antes da pandemia será um desperdício de aprendizado, pois, as mudanças e situações que fomos obrigados a enfrentar têm um potencial muito grande de nos ensinar.

Mas esse é um processo que demanda muita observação e olhar crítico. Exige maturidade e consciência de que podemos aprender a partir de todas as experiências. A pandemia nos ajudou a ter mais consciência e espero, de verdade, que não desperdicemos essa oportunidade de desenvolvimento.

Não podemos cair na tentação de fazer “mais do mesmo” ou de “retornar às origens”. Antes de colocar um novo comportamento em prática ou de estabelecer uma nova maneira de atuação para um grupo, pergunte-se: “Por que estou fazendo isso dessa maneira?” — a resposta deve fugir do “foi sempre assim” ou “foi a maneira que aprendi”. O novo nos convida à criatividade com significado.

Será o “pós-normal” um momento em que vamos experimentar novas formas de nos relacionar com o trabalho, com a saúde, com as pessoas, com a sociedade, com a natureza etc.?

No fim das contas, a pandemia foi uma grande lente de aumento sobre mudanças que já estavam em andamento no mundo do trabalho. Algumas ideias já namorávamos e outras colocamos embaixo do tapete.

De fato, se olharmos esses meses de pandemia, tivemos que revisitar alguns conceitos do mundo do trabalho e a nossa relação com o trabalho. Cada um de nós tenta enxergar a importância do trabalho em nossas vidas e analisar a relação com as organizações, ou seja, nossos empregos.

Sobre a nossa relação com o trabalho, descobrimos que trabalho é muito mais que a nossa profissão, e muito mais do que fazemos em troca de remuneração. Tivemos que ajustar um pouco o nosso modo de pensar porque achávamos que só tínhamos valor pelo trabalho profissional, pelo currículo, pelo status. A pandemia deu esse “chacoalhão” e agora já estamos em alerta, pensando qual é, afinal, a nossa relação com o trabalho.

Outro ponto que começamos a questionar é a estrutura das organizações. Faz sentido ter altos edifícios, construídos e decorados com todo glamour? Passamos a enxergar que essa pompa toda e símbolos organizacionais, talvez, sejam desnecessários, inclusive a hierarquia rígida, as reuniões impostas, as relações de reconhecimento com data marcada, tudo isso foi quebrado.

Hoje, pensamos em um novo modelo de trabalho que podemos ter. Existe outra forma de desenhar a evolução do futuro do trabalho. Vamos ter que estar ativamente nessa construção, independentemente de cargo.

*Este conteúdo pertence ao Sicredi Aliança PR/SP, que apoia projetos sociais em prol do crescimento social. Saiba mais sobre nós aqui.

*Para saber mais sobre a política de uso de informação da Sicredi clique aqui.

Comentários