Pesquisa no continente antártico: possibilidades e desafios de estudos abaixo de zero sobre evolução de espécies

Em uma jornada marcada por descobertas e limites, pesquisadora compartilha suas experiências no continente antártico, lar de líquens e outros ...

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Pesquisa no continente antártico: possibilidades e desafios de estudos abaixo de zero sobre evolução de espécies

Em uma jornada marcada por descobertas e limites, pesquisadora compartilha suas experiências no continente antártico, lar de líquens e outros organismos capazes de revolucionar a ciência e evidenciar transformações

Um continente com 14,5 milhões de quilômetros quadrados — o quarto maior do mundo —, quase todo coberto por gelo e sem população nativa. Essa é a Antártica (ou Antártida), um local onde a ciência se funde às camadas de neve e as descobertas podem apontar novos rumos à humanidade.

Berço de uma rica biodiversidade, conhecer e desbravar esse lugar inóspito é fundamental para estudar diversos aspectos da natureza, muitos ainda desconhecidos, proporcionar avanços em diferentes campos científicos e transformar vidas. 

Desde a sua descoberta oficial, há 200 anos, o território gelado já atraiu inúmeros exploradores e pesquisadores que mapearam riquíssimos registros preservados ao longo dos séculos. Atualmente, a região é um campo de pesquisas para 29 países que mantêm bases científicas por lá, entre eles o Brasil.

E no cenário de estudos com assinatura brasileira está o projeto “Evolução e Dispersão de Espécies Antárticas Bipolares de Briófitas e Líquens”, desenvolvido pela Universidade de Brasília (UnB) em parceria com a Universidade Federal do Mato Grosso do Sul (UFMS) e outras instituições brasileiras e também estrangeiras, junto ao Programa Antártico Brasileiro (Proantar). 

O objetivo principal do projeto foi estudar as populações de briófitas e líquens bipolares, ou seja, que ocorrem na região do Ártico e da Antártica, verificando se são, de fato, as mesmas espécies. 

Estudo sobre Líquens 

Os pesquisadores da UFMS, em especial, debruçaram-se sobre os líquens, miniecossistemas resultantes de associações simbióticas entre fungos e algas, com importante papel ecológico e até medicinal, e que na Antártica são especialmente abundantes. 

“Os líquens são associações simbiontes entre fungos e algas verdes e/ou cianobactérias. O fungo oferece a estrutura física de proteção, enquanto as algas e/ou cianobactérias são organismos com capacidade de produzir seu próprio alimento, e então são responsáveis por oferecer energia a essa união. Juntos, eles formam uma estrutura chamada talo”, explica Mayara Scur, doutora em Ecologia e Conservação, e uma das profissionais que embarcou nas expedições pela Antártica.

Graduada em Ciências Biológicas pela Universidade Estadual do Oeste do Paraná (Unioeste), em Cascavel, e mestre em Conservação e Manejo de Recursos Naturais, sua trajetória no projeto teve início em 2014, a partir do desejo de alcançar o nível de doutorado. 

“Foi aí que eu tive a ideia de tentar [o doutorado] na Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, em Campo Grande, minha cidade natal. Tinha a intenção de trabalhar com a genética molecular de Araucárias, mas acabei recebendo o convite mais transformador e especial da minha vida”, destaca.

Mayara integrou a equipe de pesquisadores entre os anos de 2014 e 2018 e, nesse período, pisou duas vezes no solo antártico, nos verões de 2015/2016 e 2016/2017. 

“Na primeira, cheguei até a Antártica embarcada no navio polar Ary Rongel e fiquei instalada nos Módulos Antárticos Emergenciais, uma base brasileira temporária construída na ilha Rei George, que substituiu a Estação Antártica Comandante Ferraz após um incêndio em 2012. Na segunda vez, cheguei ao continente pelo avião Hércules e fiquei instalada na Estação Argentina Primavera, localizada na península Antártica”, conta a pesquisadora.

Pisou duas vezes no solo antártico

Aventura gelada no continente antártico 

A Antártica é o continente mais ao sul do mundo, normalmente conhecido como uma terra congelada de neve e gelo. Mas a vida terrestre pode ser abundante e está respondendo rapidamente às mudanças climáticas na região. 

Musgos e líquens formam os dois maiores grupos visíveis de organismos fotossintetizantes e foram um dos mais estudados até o momento. Segundo Mayara, a estimativa é de que existam mais de 500 espécies de líquens nesse território. No Brasil, esse número sobe para 5 mil. 

Estes organismos podem ter a capacidade de se desenvolver em ambientes com condições de temperatura, incidência de luz solar e disponibilidade de água extremas. Sendo assim, a escolha por esse grupo de estudo se deve ao fato de oferecerem, conforme a profissional, respostas em potencial sobre as dinâmicas ambientais dos locais em que estão presentes.

Os resultados do projeto também podem impactar um dos campos mais delicados e preocupantes dos últimos tempos: o clima

“Existem liquens que são encontrados nas regiões polares ou temperadas dos hemisférios norte e sul, mas que não são encontrados na região tropical do planeta. Essas são as espécies chamadas de bipolares. E isso não é instigante?”, questiona Mayara. 

“O que isso pode nos falar sobre as condições ambientais passadas do nosso planeta? Poderíamos utilizar dados dessas espécies para projetar condições ambientais futuras? Essas informações podem nos orientar em tomadas de decisões conservacionistas? Foi com o objetivo de responder essas e muitas outras perguntas que embarcamos na aventura gelada pela Antártica, continente que influencia diretamente nas dinâmicas climáticas de todo o globo terrestre”, relata a pesquisadora.

Laboratório a céu aberto para estudos de evolução de espécies

De um teto de garrafa pet na 6ª série a um dos maiores bancos de DNA de líquens antárticos do mundo. A trajetória na busca por conhecimento inseriu Mayara em uma das experiências mais revolucionárias e transformadoras de sua carreira. 

“Auxiliei na descoberta de novas espécies, realizei análises moleculares que ajudaram a elucidar a história evolutiva de algumas espécies do projeto e tive oportunidade de estagiar no Senckenberg Research Institute (Frankfurt, Alemanha) para o desenvolvimento de estudos com técnicas moleculares modernas com outras espécies de líquens”, compartilha a pesquisadora.

Com o avanço das experiências, ela também participou de pesquisas com líquens brasileiros e reforça que há um processo em andamento para a publicação de novas espécies para a Ciência

“Todo o conhecimento adquirido pesquisando líquens antárticos pode ser aproveitado para conhecer a nossa biodiversidade e entender as dinâmicas ambientais do nosso país, e eu espero muito por isso”, comenta.

A Antártica é o continente mais ao sul do mundo

Com conquistas e experiências consolidadas, Mayara destaca que a paixão pela ciência foi um aspecto nutrido desde o ambiente escolar. 

“Sempre participei de projetos voltados para a área ambiental. Me lembro como se fosse hoje quando construímos um telhado de garrafa pet no Colégio Estadual Eleodoro Ébano Pereira, ou quando íamos em nascentes tirar fotos da poluição desses locais, então o meu interesse por Biologia sempre esteve comigo”, relembra a pesquisadora. 

A escolha em buscar por um estilo de vida natural e consciente acompanhou a profissional em todas as suas decisões. 

“Eu achei que me interessaria por animais ou plantas, mas o meu coração bateu mais forte pela genética molecular e por microrganismos”

“Durante o curso (2007-2011) eu achei que me interessaria por animais ou plantas, mas o meu coração bateu mais forte pela genética molecular e por microrganismos, como bactérias e fungos. Assim que eu soube do que eu gostava, comecei a procurar estágios na área, participar de eventos e visitar laboratórios na universidade. Acabou se tornando uma jornada orgânica e fluida entre os meus estágios, meu trabalho de conclusão de curso e meu mestrado”, analisa.

A profissional também conta que, em todos esses projetos, a pesquisa tinha como objetivo entender quais as respostas que microrganismos causadores de doenças apresentam diante de potenciais substâncias inibidoras, seja utilizando compostos ativos de desinfetantes comerciais ou substâncias naturais produzidas por plantas nativas brasileiras. 

“Quando eu falo de microrganismos patogênicos, estou falando, por exemplo, de Salmonella, que é um problema sério de saúde pública e para a avicultura, e de Escherichia coli, encontrada em fezes e que atinge especialmente populações sem acesso à saneamento básico”, evidencia, acrescentando que os resultados foram promissores. “O Brasil abriga a maior biodiversidade do mundo, precisamos preservar e conhecer esse laboratório a céu aberto chamado natureza”.

Vida polar

Conhecer melhor a imensidão branca motiva pesquisadores e cientistas. Trabalhar na Antártica é um desafio devido à dificuldade de acesso, e, ao mesmo tempo, um privilégio. 

“Vivi em meio a pinguins e observei baleias jubarte pelo ‘quintal de casa’. Testemunhei a força da natureza e a resiliência dos líquens que formam campos e campos de uma rica biodiversidade. Isso não tem preço para a menina que construiu um teto de garrafa pet na sexta série”, exalta Mayara.

Trabalhar na Antártica é um desafio e um privilégio

As limitações, por sua vez, ditam paralelos entre viver e sobreviver. “Na primeira expedição, tive todo o apoio logístico de uma base completamente equipada e extremamente confortável. Já na segunda, ficamos acampados em três pessoas, utilizando energia elétrica de um pequeno gerador apenas quando necessário e tomando ‘banho’ com lenço umedecido”, conta.

“A Antártica também é local de cooperação. Respeitamos os limites dos mais fracos, não deixamos ninguém para trás”

Além da mudança de rotina, não há um horário fixo de trabalho, que depende das condições climáticas para a realização de atividades externas. 

“Estar na Antártica é ficar frente a frente com a natureza. Lá, as condições climáticas são tão voláteis que qualquer planejamento logístico, por menor que seja, está sujeito a mudanças. É um exercício de humildade e de abrir mão do controle das coisas. A Antártica também é local de cooperação. Respeitamos os limites dos mais fracos, não deixamos ninguém para trás. Sem sombra de dúvidas, me tornei uma pessoa muito mais forte”, afirma.

Pesquisa em crise

Como está o clima e a conjuntura da pesquisa científica no país? 

Mayara, que há dois anos não é remunerada para trabalhar com Ciência, considera que houve, por um período, um relativo equilíbrio por parte da mão de obra especializada gerada e a capacidade do Brasil em absorver estes profissionais, especialmente em função dos investimentos destinados ao setor. 

O cenário atual, por outro lado, indica a existência de poucas opções de caminhos a serem percorridos pelos pesquisadores após o doutorado. 

“A maioria se prepara para prestar concursos públicos. Há também quem opte por desenvolver pesquisas de pós-doutorado no Brasil ou no exterior (nesse caso, participam de processos seletivos para bolsas que variam normalmente entre 1 a 5 anos em duração). Uma pequena parcela também pode ser absorvida pelo mercado privado, especialmente em áreas como, por exemplo, engenharias e farmacêutica”, observa.

O “fazer ciência” é um processo complexo que envolve pesquisadores, acadêmicos, estrutura física, horas de dedicação, testes, erros e acertos. Muitas vezes é preciso também recomeçar, buscar novas metodologias, olhar o resultado por um outro viés, reaprender a ler o que se descobriu. Por tudo isso, a pesquisa não é algo que se faz da noite para o dia e produzi-la é ainda mais desafiador. 

“Hoje nós também encaramos uma sociedade que não entende o nosso papel crucial no desenvolvimento do país nas mais diversas áreas, e acabamos nos deparando com ambientes hostis em muitas esferas. As soluções, então, acabam sendo competir com um mar de outros profissionais igualmente qualificados no Brasil, levar os conhecimentos adquiridos e financiados pelo país para o exterior ou colocar os diplomas no bolso e esperar por dias melhores”, pontua.

“Hoje nós também encaramos uma sociedade que não entende o nosso papel crucial no desenvolvimento do país nas mais diversas áreas”

O desestímulo à carreira científica e a fuga de cérebros (pesquisadores que se mudam para desenvolver suas pesquisas no exterior), refletem a marginalização da pesquisa brasileira. 

“Com a diminuição da contratação de profissionais pelas universidades por meio de concursos públicos e do investimento mínimo em projetos de pesquisa e, consequentemente, da baixa disponibilidade de bolsas de pós-doutorado, muitos pesquisadores são obrigados a mudar de área, uma vez que não conseguem cargos mais baixos em suas áreas por representarem mão de obra ‘muito qualificada’”, expõe a pesquisadora.

À medida que a ciência brasileira perde força diante do resto do mundo, diminui também a capacidade dos pesquisadores de atrair recursos, publicar em periódicos e participar de conferências. 

“Preciso continuar publicando minhas pesquisas se quiser voltar a trabalhar na área, caso contrário meu currículo fica desatualizado e eu não terei chance. Hoje, eu sou pesquisadora e isso significa trabalhar de graça. Passei a trilhar outros caminhos profissionais, pois tenho necessidades pessoais, como qualquer adulto, que não podem esperar por dias melhores para sempre. Apesar disso, amo o que faço e faria tudo novamente”, finaliza

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